segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Batateira de berço

Batateira de berço. Nasci, dei meus primeiros passos, minhas primeiras descobertas, minhas grandes amizades, meu primeiro beijo e meu primeiro amor em São Bernardo do Campo. Casei e tive meu filho em São Bernardo.

Em 1980 as grandes euforias dos movimentos sindicais já haviam se amenizado e assim como a flor da primavera, no dia 22 de setembro eu nasci. Minha mãe conta que foi um parto muito difícil, que parecia que eu não queria nascer, nem fórceps me tirava de lá, foi preciso um médico enorme sobre ela para me por pra fora, ou pra dentro desse mundo, dessa vida.

Na minha infância não passei por grandes problemas financeiros, nem nunca soube o que era sentir fome. Estudei em grandes colégios da região, participei de muitas brigas e muitas festas. Conquistei grandes amigos e, sobretudo tive a oportunidade de agregar a minha família parentes de coração.

Lembro de passar viradas do dia 24 para o dia 25 de dezembro dentro do carro, de ouvir piadas sem graça, de acompanhar sem entender conversas políticas. Vi meu pai rir, brigar somente com olhares e rir quando estava extremamente nervoso.

Fiz desenhos nas mesas do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Corri pelas escadas em algumas matinês de carnaval. Acompanhei conversas sérias em salas brancas e outras em bares.

Subi no palco, tive medo do elevador e me escondi atrás das pilastras do salão.

Foi em São Bernardo que aprendi a jogar baralho, aprendi a beber e me irritar com a fumaça dos cigarros. Foram muitos churrascos em oficinas com velhos chatos que bagunçavam o meu cabelo ou que tentavam arrancar uma palavra de uma criança muda.

Em São Bernardo também aprendi a dirigir carros, motos e a minha vida. Vi meu pai se entristecer com o que mais dedicou a sua vida. Senti ciúmes do sindicato e dos metalúrgicos, quando me esqueceu na escola porque estava lá ou com eles.

Foi no sindicato que tomei as minhas vacinas contra os vilões da saúde, que comprei minha camiseta estampada com o Raul Seixas. Era lá que a minha mãe fazia meus e de muitos outros exames de sangue, fezes e urina.

Foi no sindicato que olhei pela primeira vez ao microscópio e pude entender que havia seres menores, mas só hoje pude entender que foi lá também que pude acompanhar o crescimento dos seres maiores.

Lembro da minha mãe dizendo com carinho que um dia aquele prédio foi o mais bonito de São Bernardo. Contava-me histórias sobre o lugar e sobre aquelas outras tantas pessoas que faziam nó nos meus cabelos.

Hoje consigo reconhecer o quão importante aqueles velhos chatos eram pra cidade, para o meu pai, para a minha mãe, para o país e para mim. Consigo entender o significado daquele desenho do homenzinho rabugento que dizia “Hoje eu não to bom!”.

Nesse final de semana pude rever a história do país, de São Bernardo, da minha mãe, do meu pai e a minha. Assisti a construção do valor, do reconhecimento, da cultura e do amor.

Uma enorme sala lotada de pessoas queridas, que olhavam pra mim com carinho e diziam: “Ela é a do meio? Como está linda!”; “Seu pai foi um grande cara”; “Linda Inês!”; “Cadê seus irmãos?”; “Sua mãe não vem?”.

Não foi um dia qualquer, foi o dia em que grande parte da minha história estava reunida chorando e sentindo orgulho pela história do Cara.

Eu chorei nas cenas refletidas no telão que acalcam qualquer coração, mas chorei muito mais por conseguir entender o valor daquele sorriso que não pude dar quando era criança.

Levei a minha avó de 86 anos, nascida no Japão e que por volta dos 15 anos veio ao Brasil, teve 5 filhos. Que ainda mistura o vocabulário japonês ao português. Que acompanhou a luta de meu pai, a dedicação dele a família, mas, sobretudo aos agregados. Que acreditava na luta e que sonhava por trás dos pequenos olhos firmes.

Na maior parte do tempo se manteve quieta, comeu pipoca e tomou refrigerante, achou que as casquinhas dos petifours servidos eram de plástico, tomou a minha cerveja. Durante o filme, manteve o corpo projetado para frente, como se fosse ouvir melhor ou ler os lábios dos atores.

Quando a sessão chegou ao final pediu-me para que a levasse para cumprimentar o protagonista da história. Embora assediado, senti-me a obrigação de atender ao seu pedido, com muito custo consegui realizar o seu desejo. Com o corpo curvado para frente e a blusa azul clara com estampas amarelas abraçou e tirou fotos com o melhor amigo do meu pai.

Não sei o filminho que passou pela cabeça dela, mas chegamos em casa quase 00:00 e ela ainda estava disposta e não reclamou cansaço. Perguntei se ela gostou do filme, fez que sim com a cabeça e foi tomar banho.

No dia seguinte perguntei a minha tia se ela havia perguntado para a vó se tinha gostado do filme. Minha tia disse que sim, que de manhã havia chorado enquanto descascava verduras no quintal. E que somente naquele dia havia entendido as perdas da história.

Minha avó nasceu no Japão, mas também é batateira.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

E termina assim

E termina assim, sem explicação. Termina de novo e mais uma vez.

Termina sem final o que nunca começou.

Como a onda do mar que mesmo sem força aos poucos desmancha o enorme castelo de areia.

Construído com o tempo e muitas gotinhas de água misturadas a areia.
Que seca e se une uma a outra. Paciência.

Fica só a mancha escura no chão e depois as marcas de pegadas de cachorros, pessoas...constrói outra história, outro olhar, outra poesia.

Uma história que começa pelo final ou que termina no começo. Uma história.

Não uma linha, não um caminho. Uma sinapse. Um choque. Um momento.

Dias que somam meses e meses que somam anos e anos que não foram.
Procuro em cada detalhe um sentido, uma razão. Desaba.

Acabei antes que terminasse, antes que começasse. Borrou.

Borrou o desenho colorido feito com giz de cera, canetinha, purpurina e gliter. A traça comeu, o papel amarelou. A fita adesiva já não gruda mais.

Mas na parede ainda esta a marca que o papel fez com o tempo. Mesmo com tinta nova a marca ainda estará lá. E mesmo sem parede o lugar ainda será o mesmo. E a não-história se fez.

A purpurina já não tem o mesmo brilho. O tempo comeu. Estragou. Marcou. Mas eu estava lá pra sentir.

Eu vi a água se misturar a areia e virar castelo.
Senti o cheiro do papel e do giz.

Brinquei com a cola que secava nos meus dedos.

E estava lá quando a primeira onda chegou. A segunda. A terceira.


Acompanhei o caminho da traça.



Meu rosto brilhou quando assoprei o gliter.

Senti o peso no peito quando vi meu desenho manchar, meu castelo desmoronar
.

Eu sabia que a onda ia chegar, que a traça gosta de papel. Mas eu deixei.

Eu assoprei a flor para que pudesse ver as pequeninas partes brancas voarem. Eu vi.

Não chorei, não gritei, mas eu estava lá quando não podia mais ler as palavras escritas a lápis, mas eu sabia que elas tinham sido escritas.

Acabou antes de a bandeirinha ser estiada. Acabou antes de eu aprender a assinar.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Cotidiano

Será que vai fazer frio ou calor? Levo guarda-chuva?

Acho que este leite está azedo!

Não posso esquecer que hoje vence a quadragésima sétima parcela do apartamento.

Queria um cachorro.

Que bonitas essas florzinhas amarelas no canteiro da Via Anchieta!

Mas cachorro no apartamento...preciso comprar uma casa.

Será que o filme é um culto a personalidade?

“Epocler, você mais leve” – Epocler não é remédio para emagrecer, não gostei dessa propaganda, aliás, não sou a favor de propagandas de medicamentos.

Adoro ele, ícone da história, figura fantástica!

Que capacete é esse? Por que ele está usando um capacete cor-de-rosa?

Preciso comprar shampoo e mistura pra preparar a janta de hoje a noite, mas o dinheiro já está no final e preciso comprar pneus novos pro carro, os meus já estão carecas, tadinhos.

Ai, que trânsito é esse? Vou chegar atrasada. Não posso perder o emprego. A mensalidade da escola. E se estiver sem sinal da internet? Preciso arrumar mais dinheiro.

Será que a mãe melhorou? Podia ligar pra ela, né? To sem crédito, que saco. Precisava de um celular pós-pago. Não sei como vivíamos sem celular, ainda lembro dos orelhões vermelhos de ficha, depois ficaram azuis e com cartão. E os bips, aquilo era muito ruim, a mulher do outro lado da linha não entendia nada.

Ontem ela desmaiou.

Nossa, motoqueiro, de novo, sempre tem acidentes com motoqueiros. Acho que foi feio.

Kopenghagen, antes pensava em chocolate, nunca comi, muito caro.

Será que o recurso do projeto vai ser aprovado? A verba só dá para mais seis meses.

Ai tiazinha...não quero balas, tadinha tão velhinha vendendo balas no farol. Preciso ajudar a pagar o convênio da minha avó.

Hoje Kopenhagen é sinônimo de efeito estufa, não é mais só chocolate.

São tantos meninos dormindo nesse asfalto quente. Ouvi na televisão que ficam por até nove meses sem tomar banho.

Já tem enfeites de Natal! Será que vou conseguir comprar presentes esse ano?

Também queria ter meu nome em uma via pública. Bom Pastor, quem foi Bom Pastor? Será que tem Boa Mãe, Bom Pedreiro, Bom Técnico Reprográfico?

Já to cansada e nem acordei direito.

A crise chegou leve no Brasil. Vamos sediar as Olimpíadas de 2016, mas o mundo acaba em 2012. Será que é no começo, no meio ou no fim do ano? Quanto tempo eu ainda tenho? Devo gastar minhas economias? Comprar meu cachorro?

Amanhã é feriado, queria ir a praia, mas tem casamento.

Preciso emagrecer, minhas meias estão furadas.

Que imbecil! Bateu o guidão da moto no meu carro e nem pediu desculpas!

Ela disse que o irmão dela morreu na segunda-feira, parece que foi negligência.

Ar condicionado faz mal, mas está tão calor. Já é verão?

Será que o meu vestido é curto? Ainda bem que já acabei a faculdade, mas não acho que aquilo fosse um vestido, parecia uma blusa, tenho uma parecida só que é preta.

Cor-de-rosa, as rosas tem mais de uma cor. Por que o amarelo não é cor-de-banana? Acho que a rosa mais famosa é a vermelha, não a cor-de-rosa.

Dirigindo em São Paulo aprendi a usar a buzina. Por que não usam setas? Nem olham para o lado?

Se eu fumasse acenderia um cigarro, se não estivesse dirigindo tomaria uma cerveja. Mas e essas leis?

Cheguei! Atrasada, mas cheguei. Cansada, com calor, mas pelo menos não dei sete tiros no carro que me fechou na rua, nem esqueci meu filho dentro do carro. Hoje.